Às margens do Rio Carioca, nascia o município que viria a se tornar a Cidade Maravilhosa
Luísa Henriques
“A gente passa, a gente olha, a gente para e se extasia. Que aconteceu com esta cidade da noite para o dia?”
Os versos de Carlos Drummond de Andrade retratam o crescimento repentino da cidade maravilhosa. Todos sabem sua história, mas poucos conhecem um pequeno rio que desenvolveu essa metrópole. Não é à toa, que ele ganha o nome de carioca.
“Você já viu? Você já reparou? Andou mais devagar para curtir essa inefável fonte de prazer”.
Os índios Tamoios que lá chegaram primeiro, esbanjavam-se, banhavam-se pelo Carioca, cultuavam a sua magia; diz a lenda que as mulheres ali entravam e ganhavam beleza e, os homens, a virilidade.
Foto: Guito Moreto/ Agência O Globo
Falando em carioca, foram dos índios que esse nome surgiu. Os portugueses chegaram e, em 1503, na foz do rio, hoje, a Baía da Guanabara, foi construída uma casa, erguida por Gonçalo Coelho, navegador português que comandou as expedições que vinham da Europa para o Brasil. A enorme construção chamou a atenção dos indígenas dali: eles passaram a chamar essa casa de “akari oka”, que significava “casa de cascudo”. O nome “cascudo” era um dos apelidos dado pelos índios aos portugueses, por causa da semelhança entre as armaduras dos europeus e as placas características do corpo do peixe Cascudo. Outra versão sobre a origem do nome do rio é que uma aldeia, que ficava no sopé da Glória, se chamava “Karioka”, que significava “casa de carijó”.
Voltando à importância do rio: por um longo tempo, ele foi reconhecido como o mais importante daquela região. A historiadora alemã Jorun Poettering afirma que o Carioca foi palco de conflito entre os índios e os portugueses. “Ele é, de certa forma, o berço da cidade do Rio de Janeiro. Quando os portugueses chegaram à Baía da Guanabara, a planície onde hoje se situa a cidade foi formada de pântanos, charcos e lagoas; não se podia abrir poços para ganhar água potável, já que a água do lençol freático foi salobra. Por isso, o estuário ramificado do Rio Carioca, na atual praia do Flamengo, foi um dos lugares mais disputados na guerra da conquista. A decisiva batalha entre os portugueses e os Tamoios foi o combate pela aldeia situada ao lado do estuário: o entrincheiramento de Uruçumirim. Pode-se dizer que o fundador do Rio de Janeiro, o português, Estácio de Sá, morreu numa luta pelo acesso à água do Carioca, garantindo o fornecimento de água à cidade”.
Hoje, o rio Carioca não é mais tão lembrado: devido à canalização, foi sumindo dos olhares da população. Desde 1905, após obras de urbanização, o rio corre subterraneamente na maior parte do seu curso. Na época, a intenção era prevenir inundações recorrentes.
Foto: Carlos Augusto/ Youtube.com
O Rio Carioca nasce na Serra do Corcovado, nos pés do Cristo Redentor e foi o primeiro grande manancial que abasteceu o Rio de Janeiro. Ele corta as comunidades Cerro-Corá, Vila Cândido e Guararapes. Um pouco abaixo, passa nas Laranjeiras e Flamengo. O Carioca atravessa, a céu aberto, uma área onde há grande fluxo de despejo de esgoto e, em seguida, desaparece, passa subterrâneo e ressurge no Largo do Boticário, entre os bairros de Santa Teresa e Cosme Velho. O rio some novamente e só reaparece em sua foz, na Baía de Guanabara. Ele tem 7,1 quilômetros de extensão, mas apenas sua cabeceira, dentro da Floresta da Tijuca, permanece preservada e limpa.
Se você joga esgoto, você reduz o rio a uma única função: transportar esgoto. No passado, as águas do Carioca abasteciam boa parte da cidade e deram origem ao antigo aqueduto da Carioca, composto, entre outras obras, pelos Arcos da Lapa. Rafael Pereira, do SOS Mata Atlântica, observou, em entrevista ao site da EBC, a importância da recuperação manancial “Eu acho que a iniciativa é muito mais simbólica, do que de volume, hoje cada vez menor no que diz respeito ao Rio Carioca”, avalia. “Mas, a partir do momento em que você consegue criar um caso concreto de despoluição de um determinado rio, a gente cria parâmetros e modelos para ser expandido e utilizado na recuperação de outros mananciais”, finaliza o coordenador de revitalização do rio.
Blog Bairro das Laranjeiras
O Engenheiro Sanitário da Fiocruz, Alexandre Pessoa, destaca que o rio está doente, mas não morto. “O rio Carioca, ao longo do seu caminho, sofre poluição por esgoto sanitário e resíduos até chegar na sua foz. Ele nasce no corcovado, no alto curso ele ainda apresenta uma boa qualidade de água e a suas características de um belo rio que pertence ao parque nacional da Floresta da Tijuca, entretanto ele sofre contaminação por esgoto sanitário porque não existe, por parte da concessionária de água e esgoto e dos órgãos de controle ambiental, o tratamento adequado”, destaca.
A historiadora alemã Jorun Poettering se indigna ao lembrar que o Carioca vem caindo em esquecimento no imaginário das pessoas. “O que me espanta mais é que os Arcos da Lapa, famoso ícone da vida cultural e noturna do Rio de hoje, sejam quase totalmente desatreladas, no imaginário da população, da sua função original: a de aqueduto das águas do rio Carioca. Talvez seja motivado pela relutância de admitir o significado vital que o meio ambiente, e especialmente, a água, têm para os seres humanos. Explorou-se, abusou-se, e depois de basicamente destruir-se o Rio Carioca, esqueceu-se dele. Isto seria expressão de uma atitude de sobranceria, que não só revela uma carência de respeito em relação ao ambiente natural, mas também ao passado histórico, isto é, à própria identidade dos habitantes do Rio de Janeiro”, finaliza.
Este ano, o rio Carioca, finalmente ganhou seu devido reconhecimento e pela sua importância histórica, ambiental e cultural, será tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac). Alexandre Pessoa foi um dos autores do requerimento de solicitação do tombamento. “O Rio de Janeiro sempre sofreu de sede, e o rio Carioca tem para nós, um patrimônio histórico, cultural e ambiental. Fui um dos autores, junto ao Inepac, que solicitou o tombamento do rio e isso está em apreciação para aprovação do Governo do Estado. Então, o que eu posso dizer é que temos grande expectativa de que o Carioca seja tombado por motivos óbvios, porque isso fortalece ações não só de despoluição do rio, mas de recuperação desse patrimônio”, explica Alexandre. . Com isso, espera-se que haja uma contribuição para a sua despoluição e valorização.
“A fonte de que bebem os vizinhos da cidade é um copioso rio, chamado Carioca; de puras e cristalinas águas depois de penetrarem corações de muitas montanhas, se (sic) despenhavam por altos riscos uma légua distante da cidade, é fama acreditada entre os seus naturais que esta faz vozes suaves nos músicos e mimosos carões nas Damas". Sebastião Rocha Pita, poeta, 1724.
Mesmo pouco lembrado por grande parte da população, existe ainda hoje, um sentimento de pertencimento muito grande do rio Carioca. “Trazer de volta esse rio significa valorizar o patrimônio histórico ambiental e o povo carioca tem uma relação muito importante com isso rio”, finaliza Alexandre Pessoa.
Em alguns trechos dos morros dos Guararapes e Prazeres, o rio ainda aparenta ser limpo, existe até uma espécie de piscina em pedra e concreto, um ponto turístico muito visitado pelas escolas.
Foto: Guito Moreto/ Agência O Globo
A carioca Larissa Mancylla relembra os tempos de colégio e como o rio, ainda que pouco, faz parte da formação e diversão dos fluminenses. “Era costume dos colégios do Rio fazerem excursões anuais ou então semestrais para a Floresta da Tijuca, tanto com os professores de Ciências, quanto mais tarde com os professores de Biologia. Então, sempre íamos e acabávamos fazendo trilhas perto da lagoa, que no caso é o rio Carioca, e sempre entrava algum aluno no rio, pulava e tomava banho, até os professores perceberem e tirarem a pessoa de lá. Mas também, várias vezes que fui sem a escola, vi pessoas bebendo água ali e pessoas realmente se banhando e nem sabemos de onde vem, mas estamos tão acostumados de que pode beber água ali e nos banhar que nem pensamos muito sobre isso. Mas, pela parte da Baia da Guanabara, isso já não é tão comum porque a água já é mais suja, eu não vejo gente entrando ali mais, quanto entravam a alguns anos atrás. Hoje em dia, a única ligação próxima que temos com o rio é essa.”, lembra a estudante.
A espera da revitalização do rio Carioca e toda sua história daria um belo enredo de escola de samba, daqueles que só o Rio de Janeiro e o carioca sabem fazer. Mas enquanto esse enredo não chega, deixemos a palavra com Drummond, que assim finaliza o seu Rio em Flor de Janeiro: “Esculpintura da natureza em festa, puro agrado da Terra para os homens e mulheres que faz do mundo obra de arte total universal, para quem sabe (e é tão simples) ver?”.
O rio Carioca deveria ser mais lembrado e enaltecido, pois Alceu Amoroso Lima, escritor carioca, já dizia: “muito antes de existir o Rio de Janeiro existia o rio Carioca”.